Augusto Marcacini

NCPC Comparado

Edição eletrônica - CPC/2015 comparado com CPC/1973

As Inovações do CPC 2015

Da propositura da ação até a sentença

Concessão de vista de

autos em cartório a estudantes de Direito não

inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil

Augusto Tavares Rosa Marcacini

Outubro/1995

 

Na qualidade de Advogado-Orientador do Departamento

Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, sou indagado pela sua Diretoria acerca da possibilidade de estudantes de direito, sem inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, consultar autos de processo em cartório, especialmente os

relativos a processos que correm em segredo de justiça.

O funcionamento do Departamento Jurídico XI

de Agosto, há anos, é baseado em divisão de trabalho entre todos os que lá estagiam, de modo que o acompanhamento de processos é normalmente feito por estudantes cursando a segunda ou terceira série do curso de Direito, que, portanto, não possuem inscrição junto à OAB. Para se obter vista dos autos de processos que correm em segredo de justiça, utilizam-se de uma praxe também arraigada no Departamento: ou se inclui o nome dos "acompanhadores de processos" no instrumento de mandato, ou juntam-se aos autos autorizações expressas a estes estudantes, subscritas pelos advogados da causa, para vista dos autos. Perante a quase totalidade dos órgãos jurisdicionais desta Capital, tais mecanismos são aceitos, conferindo-se ao estudante o direito de ver os autos. Contudo, alguns juízes da Capital não

o admitem, fundamentando a recusa na lei processual em vigor.

Indaga a Diretoria se a praxe que há muito é

observada neste Departamento tem fundamento jurídico, ou se, de fato, assiste razão aos juízes que vedam o acesso aos autos por estudantes não habilitados perante o órgão de classe, ainda que expressamente autorizados pelas partes ou pelos advogados da causa. Faz parte da questão, ainda, as implicações que tal vedação acarreta no que diz respeito ao acesso à Justiça da população carente, público atendido pelo Departamento Jurídico XI

de Agosto.

Em resposta, formulo o presente PARECER:

O problema trazido já foi objeto de muitas

reflexões de minha parte, desde os tempos em que fui estagiário e Diretor deste Departamento. Todas estas reflexões serão expostas adiante neste parecer, em que - adianto desde logo - concluo que a praxe seguida por este Departamento é juridicamente sustentável, sem, com isso, desmerecer as

opiniões dos doutos que entendem diversamente.

Como método de desenvolvimento, analisaremos

todos os aspectos que envolvem a questão: a capacidade postulatória, o conceito de ato processual, o princípio da publicidade dos atos processuais e, sobretudo, o significado deste

princípio e do segredo de justiça.

a. Capacidade postulatória e prática de atos processuais.

Normalmente, a recusa em conceder vista dos autos a

estes estudantes é fundamentada na ausência de capacidade postulatória, já que não são

inscritos junto à Ordem dos Advogados do Brasil.

A capacidade postulatória, como se sabe, é

a aptidão para praticar validamente os atos processuais. Tal capacidade, salvo poucas exceções em que é lícito ao leigo postular em juízo, é atribuída apenas a advogados e estagiários, devidamente inscritos nos

quadros da Ordem.

É, contudo, um grande equívoco

atribuir à falta de capacidade postulatória o motivo para se vedar vista de autos a quem quer que seja. E tal engano decorre de falta de maior atenção tanto quanto ao significado da capacidade postulatória, como à noção

de ato processual.

Ora, ato é manifestação de

vontade do ser humano. Se esta manifestação de vontade produz efeitos no mundo jurídico, chamamo- la ato jurídico. Ou, nos dizeres do Código Civil, "todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídico". O ato processual é espécie de ato jurídico: é o ato jurídico que irá produzir efeitos no processo, na relação processual. Ato processual é o ato que tem por fim criar, extinguir ou desenvolver a relação

jurídica processual.

Vejamos a respeito, por oportunos, os ensinamentos de Liebman acerca da definição de ato processual:

"98.Noção de ato processual.

O processo tem início,

caminha e se encerra através de diferentes atos dos seus sujeitos e que são os atos processuais. Estes se distinguem dos atos jurídicos em geral pelo fato de pertencerem ao processo e de exercerem um efeito jurídico direto e imediato sobre a relação processual, constituindo-a, impulsionando-a ou extinguindo-a. Em outras palavras, os atos

processuais são os atos do processo.

Não são

havidas como atos processuais as simples atividades dos sujeitos do processo, de finalidade preparatória, tais como o estudo dos autos pelo juiz, as instruções das partes aos seus defensores, etc. Nem são atos processuais aqueles realizados pelas partes fora do processo, embora possam ser destinados a este e sobre este produzir algum efeito: assim, por exemplo, a eleição de domicílio por uma das partes, a outorga da procuração ad judicia ao defensor, a celebração de uma transação entre as partes, ou de um compromisso arbitral, e assim por diante. É ato processual, no entanto, a produção de documentos em juízo, a outorga de procuração, a transação,

o compromisso, etc.

Da mesma maneira, não

é ato processual o simples comportamento adotado por um dos sujeitos, ainda que juridicamente relevante, como a presença ou a ausência de uma parte ou seu defensor à audiência, a falta de constituição em juízo, o silêncio diante de um interrogatório (fatos omissivos). Finalmente, também não são atos processuais os dos terceiros, ainda que realizados no processo: por exemplo, é um simples fato processual o depoimento de uma testemunha, mas são atos processuais a colheita da prova testemunhal por parte do juiz e

a sua documentação.

Dessas observações

e desses exemplos, pode-se extrair a noção de ato processual: uma declaração ou manifestação de pensamento, feita voluntariamente por um dos sujeitos do processo, enquadrada em uma das categorias de atos previstos pela lei processual e pertencentes a um procedimento, com eficácia constitutiva, modificativa ou extintiva sobre a correspondente relação processual." (ENRICO TULLIO LIEBMAN - Manual de Direito Processual Civil - Trad. de Cândido R.

Dinamarco - p. 221/222 - ed. Forense - 1984)

Claro se torna, assim, que é impossível

conceber que a vista de autos em cartório seja um ato processual. Tal atividade não produz nenhum efeito, seja constitutivo, modificativo ou extintivo, sobre a relação processual. Nem mesmo no conceito de ato jurídico - gênero do qual o ato processual é espécie - a vista dos autos se enquadra, posto que nem envolve uma manifestação de vontade, nem produz efeitos jurídicos. Diga-se, ainda, que nem mesmo é um fato jurídico... Então, não passando de mero fato da vida, sem consequências jurídicas, é forçoso reconhecer que a vista de autos em cartório não é ato privativo de advogado. Não é necessário ter capacidade postulatória para apenas folhear autos em cartório e fazer anotações

próprias acerca de seu conteúdo.

b. O princípio da publicidade dos atos processuais.

O princípio da publicidade foi recentemente

elevado à categoria de princípio constitucional. É princípio de caráter político, e que muitas vezes é confundido com o direito das partes e seus

procuradores de ter acesso aos autos.

O direito de acesso aos autos pelas partes e seus

procuradores é assegurado por outro princípio, também constitucional, e de importância ainda superior: o contraditório. É o princípio do contraditório que assegura a bilateralidade da relação processual, o direito de participação no processo com vistas a poder influir no julgamento final. Como decorrência do contraditório, as partes devem ter ciência de todos os atos do processo, bem

como a possibilidade de sobre eles se manifestar adequadamente.

Reduzir o princípio da publicidade ao direito

das partes e seus procuradores, apenas, terem acesso aos autos, é confundi-lo com o princípio do contraditório. A publicidade, como o nome sugere, faz com que o processo se torne público. Público é o "que é do uso de todos; comum; aberto a quaisquer pessoas; conhecido de todos; manifesto, notório; que se realiza em presença de testemunhas, em público; não secreto" (Dicionário Aurélio). A publicidade do processo, então, faz com que qualquer do povo possa dele tomar conhecimento: as audiências, as sessões dos tribunais, os autos do processo, estão todos abertos ao público em geral, e não apenas às

partes ou às pessoas habilitadas.

O princípio da publicidade tem cunho

claramente político. Confere legitimidade à atividade jurisdicional do Estado e permite uma espécie de controle social sobre o Judiciário. Isto porque o que é justo é o que se pode fazer às claras; legítimo é o que se apresenta em praça pública. A transparência no exercício do Poder é característica inerente ao Estado Democrático de Direito. Ao contrário, o arbítrio, a repressão, as violações de direitos e garantias, estes são

melhor perpetrados em sigilo, na calada da noite.

"A garantia da

publicidade é uma garantia das outras garantias e, inclusive, da reta aplicação da lei. Nada melhor que a fiscalização da opinião pública para qua a atuação judicial seja feita corretamente. A publicidade acaba atuando como obstativa de eventual arbitrariedade

judicial.

A exigência da

publicidade originou-se da reação liberal, da mesma época das declarações de direitos, contra os processos secretos, em que os juízes atuavam sem a censura do povo, em geral. Sua finalidade, portanto, foi a de permitir uma fiscalização perene de todos os cidadãos que poderiam presenciar a distribuição da justiça." (VICENTE GRECO FILHO - Tutela Constitucional das Liberdades - p. 113

- ed. Saraiva - 1989)

Dada a importância da publicidade dos atos

processuais, o princípio, que é de ordem pública, alçou seu atual status de princípio

constitucional:

"A lei só

poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem" (CF, art.

5o., LX).

c. Restrições à publicidade e o "segredo de justiça".

Passaremos, agora, a analisar o aspecto mais

complexo e polêmico da questão: as restrições

ao princípio da publicidade.

Até aqui, como vimos, nada é capaz de

impedir que estudantes de direito - ou mesmo que qualquer do povo - tenham vista de autos em cartório. De um lado, porque, para a mera vista de autos em cartório, não constituindo isto prática de ato processual algum, é desnecessário ter-se o ius postulandi. De outro lado, sendo o processo público por norma constitucional, a qualquer um deve ser permitido o acesso aos autos, a fim de legitimar a atividade

jurisdicional do Estado.

O constituinte pátrio, é certo, não

deu ao princípio da publicidade contornos absolutos, mas impôs restrições à publicidade: a defesa da intimidade ou o interesse social são elencados no texto constitucional como excludentes da publicidade. O artigo 155 do CPC, que contém norma de conteúdo semelhante, foi, então, recepcionado pela nova ordem constitucional que se instaurou em 1988. Diz o artigo

155 que:

"Os atos processuais

são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça

os processos:

I - em que o exigir o interesse público;

II - que dizem respeito a

casamento, filiação, separação de cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos

e guarda de menores".

Uma das restrições constitucionais ao

princípio da publicidade é a exigência do interesse social em manter o sigilo. Não podemos deixar de mencionar que, quanto a esta restrição, é bastante difícil estabelecer contornos precisos. A própria noção de interesse social, numa sociedade pluralista, multifacetária, globalizada, como a atual, já é de difícil configuração. O risco de confundir interesse social com interesses do Estado, ou do Governo, ou de grupos que exercem o poder político e econômico, está sempre presente. Definir qual o interesse social que seja suficientemente relevante para justificar o segredo de justiça também nos parece tarefa extremamente tormentosa: já que há interesse social na publicidade do processo, é necessário encontrar um interesse que seja "mais social", ou mais relevante, do que a publicidade, para

afastá- la.

Pela dificuldade acima apontada, aliada ao fato de

que, na totalidade das situações vislumbradas neste parecer, o segredo de justiça se dá em razão da defesa da intimidade, em ações como as elencadas no artigo 155, inciso II, do CPC, analisaremos a questão do

segredo de justiça tão somente sob este aspecto.

Como que comparando valores, o legislador, entre

proteger a intimidade de cada um e permitir amplo controle social sobre o Judiciário, deu prevalência ao primeiro. A

defesa da intimidade, assim, justifica o segredo de justiça.

O princípio da publicidade, como exposto, é

princípio de cunho político, e de ordem pública. O direito à preservação da intimidade, porém, é de interesse do particular. Embora, em razão do texto constitucional, o direito à intimidade afaste preceito de

ordem pública, a intimidade diz respeito apenas a cada um.

E esta é grande chave para desvendar a questão proposta!

O segredo de justiça fundado na defesa da

intimidade não é imperativo de ordem pública, mas se impõe no interesse das partes litigantes. Tem por finalidade impedir que detalhes da vida privada de cada um sejam expostos publicamente. Assim sendo, para chegar a extremos que não são o objeto deste parecer, se todos os envolvidos em um dado processo concordassem, o segredo de justiça poderia ser

afastado e o processo passaria a correr publicamente.

Voltando à questão proposta, que não

é tão simples, encontramos um aspecto mais a analisar: a intimidade a ser protegida é a de ambas as partes. Daí, uma parte não pode tornar público o processo por vontade unilateral. Será, então, possível a uma das partes, sem a participação da outra, permitir

vista dos autos a estudantes de direito não habilitados?

A solução desta última

indagação passa, novamente, pela noção de público. Uma parte, isoladamente, não pode tornar o processo público. Mas público, repita-se, é o "que é do uso de todos; comum; aberto a quaisquer pessoas; conhecido de todos; manifesto, notório; que se realiza em presença de testemunhas, em público; não secreto". Dar ciência do processo a um certo número de pessoas determinadas e escolhidas (dentro dos limites do razoável!), não é tornar o processo público. Afirmamos, assim, que a parte tem o direito de contar os fatos do processo para as pessoas de seu círculo íntimo; tem o direito de consultar quantos advogados quiser, expondo-lhes os fatos; sendo atendida por órgão prestador de assistência judiciária, a parte pode livremente contar os fatos aos assistentes sociais, advogados, estagiários ou meros estudantes de direito que ali atendam. Se a parte, que tem acesso aos autos, deles extrair cópias, não estará impedida de mostrá-las às pessoas supra-citadas. O advogado da causa não está impedido de mostrar os autos a estudantes de direito que com ele trabalhem e gozem de sua confiança (embora não habilitados perante o órgão de classe, isto não desmerece sua seriedade ou integridade). E isto não é tornar o processo, ou os fatos da causa, públicos. Tornar público seria divulgar os fatos aos quatro ventos, seja pelos meios de comunicação de massa, seja mediante gritos em praça pública ou outro meio capaz de disseminar as informações indistintamente. Público é o que está disponível a qualquer um. Mas pessoas determinadas e escolhidas não são qualquer um. A qualificação das pessoas a quem se permitirá o acesso, por sua vez, é irrelevante: não deixa de correr em segredo o processo por se autorizar um ou alguns

poucos leigos - determinados e individuados - a dele ter vista.

Feitas estas considerações,

interpretemos a disposição constante do parágrafo

único, do artigo 155, do CPC, que diz:

"O direito de

consultar os autos e de pedir certidões é restrito às partes e a seus procuradores. O terceiro, que demonstrar interesse jurídico, pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e partilha

resultante do desquite".

O parágrafo diz respeito apenas aos processos

que correm em segredo de justiça, já que para os demais vige o princípio da publicidade. A intenção do referido parágrafo único, em consonância com o texto constitucional, é a de não permitir que tal processo se torne público, por isto restringe vista dos autos a pessoas determinadas. Na expressão "procuradores", porém, é lícito vislumbrar não apenas a pessoa do advogado, mas de qualquer pessoa a quem tenham sido

conferidos poderes de representação.

Receber poderes de representação, ser

"procurador", não é prerrogativa privativa de advogado. O exercício destes poderes, que pressuponha a capacidade postulatória, é que dependerá da habilitação profissional. Sempre precisas, citamos

as abalizadas opiniões de Pontes de Miranda:

"Advogado há

de ser legalmente habilitado; portanto, excluídos os solicitadores. Tem de ser inscrito no quadro da Ordem dos Advogados (já no Decreto n. 20.784, de 14 de dezembro de 1931, art. 21). O que a lei proíbe é o ingresso em juízo, ou a prática dos atos processuais. A relação jurídica entre as partes e alguém, que delas receba poderes, não lhe interessa. Tal relação pertence ao direito material, público ou privado, em que se plasmou a relação jurídica. O que a lei proíbe, portanto, é apenas a representação processual, no sentido estrito e exato ("em juízo"). A pessoa que recebeu poderes de alguma das partes não fica privada de substabelecê-los em advogado legalmente habilitado. (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, p.

126, 4a. Edição, Ed. Forense, 1995)

Assim sendo, é perfeitamente possível

que recebam procuração da parte pessoas não dotadas de capacidade postulatória. Estes representantes, como não habilitados, não poderão praticar atos do processo. Como, todavia, quem vê autos em cartório não pratica ato processual algum, o procurador não habilitado - no caso em exame, o estudante de direito integrante do Departamento Jurídico XI de Agosto - poderá ao menos ter acesso aos

autos.

Ou, ainda, a permissão de vista dos autos

pode perfeitamente se materializar mediante autorizações escritas, passadas pelo advogado da causa. A forma não é o importante, mas sim o conteúdo: tanto uma procuração subscrita pela parte como uma autorização passada pelo advogado são hábeis a indicar que a pessoa destinatária é idônea e está autorizada a ter acesso dos autos em cartório. Ambos os documentos conferem à pessoa destinatária a qualidade de "procurador", no sentido que o parágrafo único do artigo 155 confere à

expressão.

d. Do dever de guardar sigilo.

Por último, acrescentamos que o dever de

guardar sigilo a respeito das informações que recebe em razão profissão não é imposto apenas ao advogado, ou às pessoa inscritas na Ordem dos Advogados. O mero estudante de direito, exercendo função de prestar assistência jurídica à população,

tem dever legal de guardar sigilo.

O artigo 154 do Código Penal, que define o

crime de violação de segredo profissional, descreve o

seguinte tipo penal:

"Art. 154 - Revelar

alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir

dano a outrem:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

Como se vê, o crime pode ser praticado por

qualquer um, independentemente de sua habilitação profissional. Basta que o segredo, sabido em razão de "função, ministério, ofício ou profissão", tenha sido divulgado. Assim, ao estudante de direito que, trabalhando em órgão prestador de assistência judiciária, tiver vista dos autos que correm em segredo de justiça, impõe a lei o mesmo dever de guardar segredo que se exige do advogado da

causa.

Ou, no dizer de Magalhães Noronha ("in"

"Direito Penal", volume 2, 13a. edição,

p. 206, Ed. Saraiva, 1977):

"Claro é que,

referindo-nos ao que desempenha função, profissão, etc., aludimos também a seus auxiliares, sem o que estaria frustrada a finalidade da lei. Seria, como escreve SOLER, "hacer

callar a los médicos y dejar hablar a las enfermeras"."

Com isto, demonstra-se que, no tocante ao dever de

sigilo, não há porque fazer distinção entre advogados ou estagiários habilitados e estudantes de direito ou outra pessoa não habilitada. Daí, não vermos razão alguma a impedir que leigos, autorizados expressamente pelas partes ou pelos advogados da causa, possam ter acesso em cartório aos autos de processo que corra em segredo

de justiça.

e. Do acesso à justiça.

Sob o prisma em que o segredo de justiça foi

acima exposto, vê-se que não há o menor sentido em proibir vista dos autos aos estudantes de direito - ou mesmo a qualquer pessoa - desde que expressamente autorizados a ter acesso aos autos. Não pode o Poder Judiciário arvorar-se em guardião da intimidade alheia contra a vontade do próprio interessado. A intimidade diz respeito a cada um e, respeitado o direito à intimidade da parte contrária de impedir que o processo se torne público, não cabe ao Judiciário vedar o acesso aos autos a pessoas a quem o próprio

interessado concorda em dar ciência deles.

A proibição do Judiciário,

assim, é inócua: basta pensar que estas pessoas expressamente autorizadas, se estão autorizadas, certamente já sabem de todos os fatos que se pretenderia esconder. Ou se não sabem, virão a saber, seja por amizade com a parte, seja por trabalharem no escritório de advocacia ou no órgão

prestador de assistência judiciária.

No fundo, o que a proibição causa, ao

invés de proteger a intimidade das partes, é obstar o acesso à justiça. Dificultando o acesso aos autos, exigindo a presença de advogado habilitado para tomar ciência de cada pequeno movimento do processo (embora muito criticados, os famigerados despachos que contêm apenas a determinação "Digam" ainda são frequentes!), o custo de um

processo se eleva e, pior, eleva-se inutilmente.

No âmbito deste parecer, em que o problema

afeta órgão prestador de assistência jurídica à população carente, o problema se amplifica. Os órgãos estatais incumbidos de prestar assistência jurídica não dão conta de atender à intensa demanda por seus serviços. Para aliviar a carga, o Estado firma convênios com entidades públicas e privadas, o que, aliás, é o caso do Departamento Jurídico XI de Agosto, que é conveniado com a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo e recebe verbas públicas para garantir seu funcionamento. Mas, mesmo assim, a insuficiência do serviço continua uma constante, sem perspectivas de solução, talvez menos por falta de profissionais para atender do que pelo excesso de pobres para serem atendidos. Neste contexto, qualquer racionalização do trabalho que permita uma ampliação no atendimento reflete diretamente no maior e melhor acesso à Justiça

por parte da população carente.

Assim, entendendo a lógica do funcionamento

destas entidades estudantis prestadoras de assistência à população, se a estudantes de direito não habilitados na Ordem, for vedado o acesso aos autos em cartório, isto exigirá que um estudante de quarto (lembrando, ainda, que estes, por razões práticas e burocráticas, normalmente só obtêm inscrição na OAB após o mês de abril ou maio do ano em que ingressaram na quarta série) ou de quinto ano deixe de dar atendimento para ver os

autos do processo.

No final, fica o dilema: estas entidades para bem

funcionar e atender à comunidade, dependem da cooperação de estudantes de direito de todas as séries; o Judiciário, ao proibir a vista dos autos aos estudantes não habilitados, impede que estes desempenhem as únicas funções que têm condição de exercer: anotar autos; e o pobre, de seu lado, que não tem dinheiro para pagar um advogado particular, depende do bom funcionamento do órgão prestador para conseguir ser atendido e, ao menos uma vez, ser

tratado como cidadão.

Com estas últimas considerações

concluo o parecer. A pretensão de dar acesso aos autos do processo a pessoas autorizadas, embora não habilitadas, é legítima e não vedada por lei. A afirmação tem abrangência geral, mas, no âmbito da assistência judiciária, ainda se configura como um imperativo, necessário a permitir o mais amplo acesso à justiça à

população carente.

Última atualização em 19 de abril de 2005, às 13h14 - Esta página teve 15678 acessos